13/06/2010

A minha avó, mulher iletrada mas de vida farta, quando a noite caía e depois da cozinha arrumada, costumava preparar um chá de cidreira para nós as duas que servia em grandes copos de plástico e acompanhava o pão quente que a padaria em frente vendia por volta das onze da noite. Por essa altura, já o rádio tocava baixinho os pedidos dos ouvintes que não raras vezes oscilavam entre o fado da Severa e as baladas de António Calvário. E eu gostava daquilo. O silêncio da casa, os animais aninhados ao calor do fogão, eu ali sentada à mesa, cujo tampo em mármore já o tempo houvera lascado, as mãos envoltas no copo que fumegava e a avó, de xaile nas costas e óculos na ponta do nariz, a enfiar um ovo de madeira nas peúgas para lhes dar remendo. Devia ter para aí oito anos, não sei bem, quando numa dessas noites a avó, mulher que quase não conseguia assinar o nome mas que sabia das coisas do mundo e dos homens, me contou a história de David.

Lá no tempo dos antigos, ainda Cristo não houvera nascido, chegaram os filisteus a Judá com o propósito de tirar teimas com os israelitas. Lá do meio dos filisteus apareceu então, assim de repente, um grande brutamontes, de seu nome Golias que, segundo reza a história, o homem tinha uma figura de meter medo e respeito e todo ele vinha artilhado com capacete e escudo e lança. Diz-se que só a artilharia que o Golias trazia vestida equivaleria ao peso de um homem médio. E logo os israelitas ficaram todos cheios de miufa. E vai o Golias e diz: oh pá, escolham lá aí um badameco para vir lutar comigo. Se vocês ganharem nós ficamos vossos servos e se ganhar eu, vocês servem-nos a nós. E o exército israelita olhando para aquele homem grande encolheu-se. Eis senão quando, aparece David, um tipo que costumava pastar umas ovelhas, um meia leca de gente, e vai de encher o peito e perguntar alto e bom som: “Quem é, pois, este incircunciso filisteu, para afrontar os exércitos do Deus vivo?” [eh pavão lindo!]. Para um tipo que nem cara tinha para levar dois estalos, não está mal. Depois há aqui uma parte em que David é chamado ao rei Saul, mas resumindo e concluindo, é David quem se chega lá à beira do Golias e lhe diz “Tu vens a mim com espada, e com lança, e com escudo; porém eu venho a ti em nome do Senhor dos Exércitos”, toma lá com uma pedra no meio da mona e vamos embora que a minha vida não é isto.

E eu deliciava-me a ouvir as histórias da Bíblia contadas pela minha avó, que mal sabia ler e escrever e que tremia sempre muito de cada vez que tinha que assinar o seu nome. Porque, depois de remendadas as meias e enquanto se arrumavam as linhas e agulhas na caixa de costura, a avó pousava os óculos naquela mesa, cujo tampo em mármore já o tempo houvera lascado, e dizia-me: sabes querida, há circunstâncias na vida das pessoas que são assim como que uma espécie de Golias e nós, de duas uma, ou ficamos com medo ou seguimos em frente, como David. Para a minha avó mais do que o tamanho do problema o que contava era a solução encontrada na atitude e no coração de cada um. Mesmo quando tudo parece impossível, mesmo quando a adversidade é grande, seguir em frente e acreditar é sempre melhor do que ficar. Porque, dizia-me a avó, o medo tira o brilho dos olhos às pessoas e rouba-lhes o sorriso e eu não quero nunca isso para ti. Depois, dava-me um beijo, metia-me na cama, aconchegava-me os lençóis e afagava-me os caracóis até eu adormecer.

Hoje, quando os Golias desta vida me assaltam, é às tuas palavras que me agarro, avó. Hoje, como há dez anos, continuo a sentir falta das tuas mãos seguras que me afagavam o cabelo e espantavam os medos.